Trans e Quadrinhos: Quando Acordei Mulher

Ontem foi o pouco conhecido Dia Internacional da Memória Transgênera, que eu tive ciência através de uma franca conversa com uma querida amiga. Coincidentemente, caiu no dia da Consciência Negra aqui no Brasil, já que a data corresponde a data de morte de Zumbi dos Palmares e, no caso do evento internacional, marca a data do assassinato de Rita Hester, mulher trans negra, em 1998. Já produzi textos que buscam combater o racismo através da valorização, como foram os textos sobre Orrin Cromwell Evans, a editora MilestoneJohn Henry Irons e Martha Washington. Não esgotam, de maneira alguma a atual necessidade de visibilidade, mas farei, aqui, uma reflexão sobre sexualidade.

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Shvaughn Erin

Existem muitos personagens transgênero  nas histórias em quadrinhos, mas geralmente eles são tratados do ponto de vista da fantasia e não da realidade. Muitas vezes, o mecanismo de introdução de uma ideia sem mexer num tabu acaba produzindo coisas curiosas. Um exemplo disso é a personagem Shvanghn Erin, uma policial do século XXX nos quadrinhos da Legião dos Super-heróis, da DC Comics, desde 1978. Durante uma aventura (na edição de número 31 da revista Legion of the Super-heroes, em julho de 1992, inédita no Brasil), é descoberto que Erin fez uso de uma droga chamada Profem para mudar de gênero, deixando de ser o masculino Sean Erin para se tornar a feminina Shvanghn Erin. O drama se dá quando seu então namorado, Jan Arrah, o Rapaz Elemento (ou Transmutador) entra numa crise de identidade. Toda essa narrativa, porém, foi descartada pela editora após mudanças como Zero Hora e Crise Infinita. Shvanghn reaparece na mitologia da Legião, mas sem seu histórico transgênero.

Durante muitos anos esse assunto sempre foi tabu, como vimos, apenas tratável quando a temática era raça alienígena, super-drogas, raios cósmicos transformadores de matéria. Só recentemente o tema foi tratado com respeito ao universo plural da sexualidade, com a personagem Alysia, mulher trans (e lésbica) que surge coadjuvante nos novos quadrinhos da Batgirl (saiu aqui na edição A Sombra do Batman, número 19, da editora Panini em 2014). Alysia é a companheira de quarto de Bárbara Gordon, a Batgirl, e que em recente publicação (saiu aqui na edição número 49 da Sombra do Batman, em setembro de 2016) casou-se. Excelente decisão de Gail Simone, ao introduzir num cenário que dialoga com a realidade uma mulher trans. Mas ainda são personagens pouco expressivos, geralmente coadjuvantes, como Jacob Gavin Jr, personagem mutante da Marvel Comics, aliado a Deadpool e Gambit, que ficou preso num corpo feminino após uma aventura (jacob, ou melhor, Jaqueline, aparece na minissérie Deadpool: The Circle Chase, de 1993, lançada no Brasil no encadernado Deadpool Clássico número 1, da editora Panini, agora em 2016).

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Alysia conta para Bárbara que é transgênero

Marvel Comics também tem sua cota de transgêneros além dos coadjuvantes, muitas vezes desse lugar confortável da fantasia. A Mulher-Aranha, Jessica Drew, do universo Ultimate (ou Terra-1610) já teve conflitos de identidade de gênero ao descobrir ser uma clone de Peter Parker. Em outras situações, o jogo de troca de gênero é bastante polêmico. Loki, irmão de Thor, tanto na mitologia quanto nos quadrinhos, já assumiu o gênero feminino (inclusive o sexo feminino). No mito, pariu Sleipnir, o corcel de oito patas, ao engravidar enquanto se disfarçava de égua. Nos quadrinhos, já escondeu sua vitalidade no corpo de Lady Sif e durante um certo tempo ele atuou como mulher (uma das vezes para invadir um reino de mulheres celestiais, na minissérie Thor & Loki – O décimo reino, lançada aqui em Pecados Originais número 2, em 2015 pela Panini).

Tristao4-300x265.pngComo conviver com um corpo no qual não se identifica? Pior, como viver num mundo onde a aparência, o sexo biológico, está rigidamente entrelaçado com sua conduta sexual? A narrativa ficcional colocou tal incomodo de uma maneira singular na série Camelot 3000. Com a bela arte de Brian Bolland, minissérie escrita por  Mike W. Barr e publicada originalmente em 1982 (aqui no Brasil saiu pela editora Abril na revista Batman 2, em 1984,  e em minissérie em 4 edições em 1988. Saiu, também, em versão encadernada pela Mythos em 2005 e pela Panini em 2010), conta a história da volta dos cavaleiros da Távola Redonda, principais da mitologia arthuriana, numa Inglaterra futurista. Mais uma obra underground que se vale da ficção para se criticar politicamente o presente, mesma escola da Tank Girl (lembra do texto? Não? Opa, leia aqui!).

A transição dessa mitologia medieval para os quadrinhos britânicos dos anos 80 não ocorreu sem mudanças radicais. Merlin ainda é um poderoso mago e Morgana Le Fay lidera uma horda alienígena contra o planeta. O triangulo amoroso é revivido entre ArthurGuinevere e Lancelot, ainda carregado de um dramalhão digno da ópera. Enquanto Percival é uma criatura monstruosa e Galahad um samurai. Gawain é um africano, negro. Até então, as mudanças foram estéticas e sutis, aproximando o grupo medievo de cavaleiros em super-heróis. Mas, então, eis que Tristão reencarna neste futuro no corpo de uma mulher, e defronta-se com Isolda com o mesmo sexo.  Mas uma representação do drama da incompatibilidade entre sexo e gênero inserido como elemento narrativo para a fantasia. Momento oportuno pra entender sobre sexo e gênero.

Tristao1-256x300O dimorfismo sexual tende a dividir os aspectos do sexo biológico, ou seja, das duas disparidades sexuais, através de características reconhecíveis, geralmente entre machos e fêmeas. Nos estudos de sexualidades, entretanto, é acrescentado o intersexual (Anne Fausto Sterling) como uma possível identidade com o sexo, muito além das limitações das aparências sexuais binárias guiadas pela genitalidade. O sexo, então, é a compreensão de aspectos que definem-se através de genética, anatomia, fisiologias e hormônios. O gênero, por sua vez, não é sinônimo de sexo. São através de outros conjuntos comportamentais, onde atitudes e práticas são socialmente normalizadas, geralmente divididas entre feminino e masculino, que o gênero é estabelecido. Em sociedades sexistas os dimorfismos sexuais são, forçosamente, indicativos das identidades de gênero, fazendo com que a ideia de procriação sobreponha-se às felicidades possíveis das pessoas.

Mesmo na ficção, temos Tristão acordando da ilusão de sua atual vida num altar, no momento em que se casaria. Tristão acorda de seu longo sono num corpo de mulher e sua primeira atitude diante é pegar a espada do cavaleiro que o despertou (ou a despertou) e cortar seus longos cabelos. Numa sociedade onde os gêneros obedecem a padrões sexuais, há (geralmente, já que eu mesmo fujo a essa) regra performática em que mulheres possuem longos cabelos. Tristão, seguindo a premissa de Judith Butler, subverte essa regra no conflito entre sua alma masculina e seu corpo feminino. Diante do rei Arthur, ao se apresentar, nega a alcunha de “Lady” e assume-se “Sir”. Os tratamentos, seus lugares de fala, como os dois supracitados, são dispositivos de poder para regular os corpos (Michel Foulcault). A ficção, então, nos pode dar esse laboratório para se pensar as sexualidades.

Tristao2-250x300A partir daí todo o drama envolvendo Tristão e Isolda escapa do outrora relato de amor proibido por conta de suas diferenças de estamentos, mas, agora, através de convenções sexistas e heteronormativas. O cavaleiro Kay, provocativo, faz diversas definições de papeis sexuais para Tristão: A chama de “Lady”, oferece uma bebida mais aceitável para uma mulher, diferente da “rude beberagem masculina”, além de ostentar como um capote de paseo (o pano usado por toureiros) um vestido “mais adequado” para uma mulher. Mas onde Tristão mais sofre é no coração. Os sentimentos de alguém que o gênero e o sexo não são compatíveis (diante, claro, das definições de uma sociedade sexista), sendo alvo de seduções da bruxa Le Fay, que oferta a Tristão seu corpo masculino de volta. A história em quadrinhos Camelot 3000 não é tão “papo cabeça” como minha abordagem possa parecer, mas, dentro da ludicidade, ela pode, sim, nos oferecer um espaço narrativo e de entretenimento em que podemos discutir assuntos de sexualidade.

Tristão não sabe conviver com seu corpo, mas para muitas pessoas a conquista de suas felicidades vão existir na transformação do corpo. Mudar os aspectos do sexo biológico para, enfim, contemplarem uma vivência plena de suas identidades construídas. Identidades com o sexo, com o gênero e com a orientação sexual, sem que para isso tenham que engessar-se em pré-determinações da sociedade. Se somos capazes de usar de tecnologias para mudar o mundo que nos cerca e mesmo tratar de doenças e outros males, se somos autorizados a modificar os corpos em prol da estética valorizada ou mesmo dos padrões de beleza, por que para muito é tão difícil entender mudanças em prol da felicidade de alguém?

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Tristão e Isolda

Dia Internacional da Memória Transgênera não envolve apenas a luta pelos direitos e pelo respeito, mas, também, como exercício para não esquecer as vítimas de violências baseadas no preconceito e covardia. Efeito de pessoas que, num estado de ignorância, se atemorizam com a ideia de que sexo e gênero não são sinônimos e que isso possa desmascarar uma fragilidade no binarismo sexista. De que aquilo que sempre viveram como normal, como regra, possa surgir como uma violência desmedida (Pierre Bourdieu). Uma violência que se estimula através de uma naturalidade errônea das identidades sexuais possíveis, e que seu poder patologizador produz um mar de infelicidades.

A ficção tem essa possibilidade de se produzir criticidade através da ampla exemplificação, fazendo com que o verossímil possa fazer-se entender o real. O maior exercício de sensibilidade que uma pessoa pode ter, inegavelmente, é se colocar no lugar do outro. Para isso, também, é fundamental haver tal sensibilidade para se desconstruir os discursos de autoridade e se permitir definições de lugares saudáveis para essas minorias. Quem sabe esses conflitos e temores um dia possam ser apenas elementos narrativos de uma ficção distante de nós.

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