Justiceiro: Banco dos Réus

Há uma trajetória, na ficção e na realidade da indústria de entretenimento, no Justiceiro (Punisher) que lhe carrega de dubiedades. Um personagem de histórias em quadrinhos estadunidenses que já vigora um debate simples entre as pessoas que leem suas narrativas: é um super-herói? Um super-vilão? Um super-anti-herói? Para entender o peso de seus comportamentos para o público leitor de quadrinhos, é interessante conhecer os contextos históricos de sua criação, sua produção, os autores envolvidos na construção de sua própria mitologia.

Com seu uniforme de cores neutras, a emblemática imagem da caveira branca em fundo preto, armas, muitas armas, assim conhecemos o personagem Justiceiro. Este artigo é parte da proposta pedagógica para os alunos do colégio Augusto Comte, do Coletivo Humanas em Movimento, com Jeferson soares, Anderson Silva, Áurea Helena e George Oliveira. O objetivo é promover um júri simulado com o personagem Justiceiro, no rico exercício de debate sobre questões interdisciplinares. O Justiceiro, personagem da ficção da indústria de entretenimento das histórias em quadrinhos, é colocado no banco dos réus para se pensar as questões que envolvem sua existência como combatente do crime que se vale do homicídio e outros crimes. O objetivo não é perseguir um produto ficcional, mas promover a possibilidade crítica de nossos contextos sociais, como o crime e a sua punição, a descrença nas instituições e a crença na violência como solução, através da ficção-fantasia.

Convém apresentar o personagem centram de nossa empreitada investigativa e crítica: O Justiceiro. Surgido como antagonista do Homem-Aranha na edição de número 129 de The Amazing Spider-Man, em fevereiro de 1974 (no Brasil ela foi publicada no número 63 da revista Homem-Aranha, pela editora Abril em junho de 1974, e posteriormente em diversas edições deste e de outras editoras), o Justiceiro foi apresentado pelo roteirista Gerry Conway como um adversário perigoso para o super-herói escalador de paredes. Na narrativa, desenhada por Ross Andru (e auxílio estético de Jhon Romita), o personagem foi um fuzileiro naval, Frank Castle, manipulado por um vilão para enfrentar o Homem-Aranha, e que, na revista edição de número 2 da revista Marvel Preview, de abril de 1975 (curiosamente inédita no Brasil), apresentou-se o trauma que gerou sua guerra violenta contra o crime: a chacina de toda a sua família no Central Park, em Nova York, pela máfia.

Primeira aparição do Justiceiro.

Apesar de ser um elemento crítico da década de 1970, como um antagonista violento e reacionário, com o governo de Ronald Reagan na década de 1980 se tornou popular. Sintonizou com os discursos politicamente hegemônicos de guerra ao crime e pena capital, fazendo com que a sociedade tendenciosamente mais atraída pelos discursos conservadores-reacionários, desde o governo do presidente Richard Nixon, impeachmentado por ilegalidades, que usou a chamada “guerra às drogas” para criminalizar comunidades negras e comunidades hippies, com mortes e encarceramentos em massa. O próprio criador do Justiceiro, Conway, descreve o personagem como um fracasso da sociedade e do sistema judiciário, como um criminoso e fora-da-lei, que apesar de útil ao debate, não deveria ser exemplo para policiais, por exemplo, que participaram dos confrontos dos movimentos sociais como Occupy Wall Street, Blacks Lives Matters, dentre outros pelo mundo. Em 6 de junho de 2020, Conway publicou uma mensagem em sua conta de Twitter dizendo que a relação entre o personagem e a Justiça é uma questão em aberto, mas que seu uso pelas forças policiais era moralmente equivocado, pois significaria a legitimação moral da opressão.

O Justiceiro foi trabalhado por diversos roteiristas e artistas durante as décadas, ganhando contornos cada vez mais críticos sobre sua conduta e seus discursos. Seu nome original, Punisher, poderia ser traduzido como “punidor”, mas a editora detentora dos direitos de publicação escolheu por “Justiceiro” e isso talvez nos diga bastante sobre a interpretação do personagem pelo prisma cultural, social e político brasileiro diante da chamada “guerra ao crime”. Junto com outros personagens, como Demolidor, ele existe em narrativas mais próxima da realidade social do crime, por isso autores como Steven Grant, na minissérie que trabalhou com o artista Mike Zeck em 1986 (No Brasil, Justiceiro Especial número 1, pela editora Abril em junho de 1990), Mike Baron em parceria com Klaus Janson desde o final da década de 1980, tiveram cuidado de tratar do tema sem enfatizar nos discursos qualquer glória à cruzada ilegal do personagem. O roteirista Garth Ennis, após 2000 e durante 8 anos, apresentou um Justiceiro psicótico, atualizada sua origem militar do Vietnã ao Iraque,

Justiceiros: Dolph Lundgren, Thomas Jane, Ray Stevenson e Jon Bernthal.

Essa possibilidade de realismo levou o Justiceiro ao cinema em 3 ocasiões, e posteriormente a uma série televisiva própria. Dirigido por Mark Goldblatt e com Dolph Lundgren como o protagonista, tivemos The Punisher em 1989, com retorno financeiro pouco expressivo e recepção negativa com a crítica. Em 2004 Jonathan Hensleigh dirigiu The Punisher, com Thomas Jane interpretando Frank Castle e John Travolta como o vilão, com os críticos e o público tendo opiniões diferentes. O filme The Punisher: War Zone, de 2008, opta por uma narrativa mais sombria no protagonismo de Ray Stevenson, mas recebido pela crítica como atrasado (algo muito ancorado na década de 1980). Enquanto todos esses filmes apresentaram o Justiceiro enfrentando o crime organizado pouco aprofundado, a série The Punisher, com o Justiceiro interpretado por Jon Bernthal, em duas temporadas entre novembro de 2017 e janeiro de 2019, apresenta uma visão menos romântica da relação entre Estado e crime organizado, apresentando corrupções envolvendo políticos e militares.

E em todas essas representações narrativas do Justiceiro, temos amplas possibilidades de debate sobre crime, crise e punição. O Justiceiro é um desajustado que desacredita do poder do Estado de promover justiça e bem-estar por conta de seu trauma, e mergulha em uma lógica arbitrária e violenta, que o aproxima muito mais dos criminosos que combate que dos heróis e super-heróis em seu entorno. A solução radical do Justiceiro em sua Guerra ao Crime, nunca chegou ao fim, sempre há alguém novo para ocupar o lugar de traficante, de assassino, de criminoso, já que pouco se articula para entender a natureza sistêmica da questão criminal. Só nisso, nos é permitido questionar a eficiência do combate ao crime através do uso da violência, já que a ficção nos fornece o exercício de pesar as soluções das crises da realidade. Nos fala dos fracassos tanto da Guerra do Vietnã e o ressentimento estadunidense no período e da insolúvel Guerra às Drogas e ao Crime.

É um exercício complexo e cheio de nuances e possibilidades, julgar moralmente o Justiceiro. Se não faço aqui pontuações mais determinantes, é para que as alunas e alunos do Juri Simulado possam construir suas próprias interpretações neste exercício pedagógico. Crime e castigo, justiça e vingança, perverso ou louco, a dubiedade precisa sempre passar pelo crivo da argumentação. E quer Frank seja um homicida vingativo ou um cruzado insano na guerra contra o crime, punível ou não, ele nos diz muito de quem somos quando reagimos ao mundo e ao medo. Não concluímos ainda nada, porque o debate, em sala de aula, está ainda para começar!

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