Barbie: Sobre o Pós-Feminismo, Padrões de Beleza e Reacionarismo

Barbie chegou escapulindo da caixa, deixando progressistas entusiasmados e reacionários furiosos. Só nisso já é possível dar os devidos louros à produção, colocando as questões de gênero no centro da ficção, principalmente se tratando de uma boneca marcada por padrões de beleza conservadores e problemáticos. Loira, branca, magra e bem-sucedida, o filme que poderia enaltecer esses marcadores sociais, faz uma jocosa crítica aos mesmos, mas gastando munição com a cansativa guerra dos sexos.

Este texto não entrega o enredo do filme, então a experiência cinematográfica está mantida. Nem pretendo fazer a História resumida da boneca, isso já está bem arrumadinho no vídeo do canal Um Canal de História, na pesquisa da professora Yasmin Figueiredo Gomes (https://www.youtube.com/@UmcanaldeHistoria). Optei por trilhar um outro caminho, já que tenho afinidade com conceitos ideológicos e políticos dos Estudos de Gênero. Após ter visto o filme, dentre tantos pontos que a ficção divertida apresenta, uma fala me chamou bastante atenção, pois tratava o fantasioso mundo das bonecas Barbie como uma conquista das mulheres, em frases com ar de superação.

No nosso mundo real essa ideologia rosácea e positiva ganhou um nome: Pós-Feminismo. Longe de ser uma novidade neste blog, pois já tratei do conceito no texto sobre a Mulher-Hulk (Leia o artigo completo aqui!), o Pós-Feminismo, entretanto, parece sintonizar muito bem com a História da boneca Barbie e isso está presente no filme recente, live-action lançado neste 20 de julho de 2023, dirigido por Greta Gerwin e com a atriz Margot Robbie como a personagem principal da franquia de brinquedos da Mattel. A comédia bem-humorada, com indicação de idade acima de 12 anos, é construída com bastante crítica social que envolve o machismo e o patriarcado. Apesar das questões levantadas sobre o machismo ainda imperante, é pouco progressista, ainda bastante conservadora, mas ainda tomada pelo ódio reacionário.

Barbie e todas as bonecas e bonecos cidadãos na Barbilândia, vivem numa inversão dos papéis e hierarquias de gênero. Mas essa inversão não é lida em nenhuma reflexão séria das políticas sociais como Feminismo(s). Essa inversão é apenas um delírio do Pós-Feminismo, tanto de alienações às questões não resolvidas quanto daqueles amedrontados que temiam uma “vingança” das mulheres. Pós-Feminismo, trocando em miúdos, é a concepção, ansiosa e precipitada, de que houve todas as conquistas necessárias da luta das mulheres, superando a necessidade do feminismo, na experiência de um torpor confortável ao regime sexista. Termo cunhado no texto da jornalista Susan Bolotin. Essa definição sequer é rígida, já que o termo também pode ser usado como movimento crítico de negação dos alicerces tradicionais, sintonizado com o Pós-Moderno.

A atriz Margot Robbie como Barbie, numa cena do filme Barbie (2023) que homenageia 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968).

No caso da leitura de traços do filme Barbie, o conceito útil à reflexão é justamente o de ilusão, que torna o feminismo irrelevante para essas bonecas que vestem rosa. Essa ilusão cegou algumas mulheres (geralmente brancas, cis, heterossexuais) durante as décadas de 1970 e 1980, quando foram confrontadas com outras vertentes feministas, como o Feminismo Negro, o Feminismo Lésbico e o Feminismo Radical, entre outros. Ainda que Barbie tenha vivido, enquanto produto da indústria de brinquedos, durante todas essas décadas, pouco estava sintonizada com os movimentos libertários de mulheres. No dia 7 de setembro de 1969, em Atlantic City, feministas promoveram um protesto performático às portas do concurso de beleza Miss America, jogando no lixo diversos objetos como vestuário, sapatos com saltos, revistas femininas e… a boneca Barbie.

Com o passar dos anos, a empresa Mattel produziu mudanças nas linhas de produtos Barbie, para promover mais diversidade (e mais vendas, é claro). Isso ocorreu de forma bastante conservadora, inserindo bonecas negras a partir de 1967, por exemplo, mas com traços suaves do molde comum da figura original branca, apenas com a cor diferente. Sempre com atrasos, essas mudanças confrontam pouco ou nada o status quo social de disparidades de gênero, raça, peso, faixa etária, etc. Mantendo padrões de beleza para que as mulheres encarnem dentro da mitologia patriarcal, questionada por Naomi Wolf em seu livro, O Mito da Beleza. A inovação de uma boneca diferente da tradição de simulacros de bebês, uma representação de mulher adulta produtiva, talentosa, ambiciosa e sempre feminina e na moda, não saciam os movimentos feministas. Uma nova mulher, na concepção do Pós-Feminismo, é apenas bem-sucedida no mundo dos negócios, ocupando cargos outrora exclusivos ou hegemônicos aos homens, mantida numa caixinha confortável ao patriarcado.

Então, dentre tantas cartas usadas na mão eficaz de Greta Gerwin, podemos sentir que o Pós-Feminismo é criticado por ser enganoso, como uma calmante pílula rosa (pink pill). Barbie, se quiser sobreviver no século XXI, precisa acordar para as pautas mais atuais dos movimentos políticos das mulheres, na transição de seu mundo plástico ao mundo real, dos corpos inalcançáveis que causam tantos transtornos às crianças que não se veem representadas nos pequeninos corpos plásticos em suas coloridas caixas de papelão, mas respeitando tantos sonhos que essas bonecas permitiram nas experiências pessoais e íntimas de tantas meninas e mulheres que foram aos cinemas em vibrantes roupas rosas. O filme nos diz, com gentileza, que é preciso superar o Pós-Feminismo, e isso incomodou aqueles que preferiam que as mulheres continuassem satisfeitas com seus saltos altos e aceitando o feminismo como coisa do passado.

É, por fim, um filme divertido, e promove críticas pontuais aos problemas sistêmicos das desiguais relações de gênero ainda tão persistentes em nosso mundo. Bem-humorado, consegue brincar com estruturas caras ao machismo, sem com isso levantar com vigor um feminismo mais atualizado, apenas reforçar questões que foram significativas aos movimentos de mulheres, atualmente pautas tão ameaçadas pelas ondas conservadoras-reacionárias que se fazem necessário lembrar. Se para alguns soa feminista (quase radical), é sintoma de que tivemos um recuo nas conquistas das gerações anteriores de mulheres, que viveram experiências com a boneca a ponto de confrontá-la, exigir mudanças à empresa e até mesmo superá-la e negar seus limites.

Para Saber Mais:

BOLOTIN, Susan. Voice From the PostFeminist Generation. In: New York Times, 17 de outubro de 1982. Disponível em: New York Times Post Feminist.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina – A Condição Feminina e a Violência Simbólica. 18ª edição. Editora Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2020.

CRENSHAW, Kimberlé Williams. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. In: University of Chicago Legal Forum, Edição 1, artigo 8, 1989: Disponível em: http://chicagounbound.uchicago.edu/uclf/vol1989/iss1/8.

DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. Editora Boitempo, São Paulo, 2016.

FARRELL, Amy Erdman. A Ms Magazine e a Promessa do Feminismo Popular. Editora Barracuda, São Paulo, 2004.

LIMA, Savio Queiroz. A História Estética da Mulher Maravilha: Vestuário e Padrões de Beleza Refletidos nas Histórias em Quadrinhos. In: XVIII Encontro de História – ANPUH RJ. Anais do XVIII Encontro de História da ANPUH-RJ: Histórias e Parcerias. Niterói, 2018. Disponível em: Mulher MaravilhaBelezaEstetica2018.pdf.

LIMA, Savio Queiroz. A História Oculta das Mulheres de Bana-Mighdall: Um Estudo de África e Gênero. In: XXVIII Simpósio Nacional de História. Anais do XXVIII Simpósio Nacional de História. Florianópolis, 2015. Disponível em: MulheresMara vilhaBana.pdf.

LIMA, Savio Queiroz. Mulher-Hulk – De Raivosa Monstra à Bem Humorada Advogada: Pós-Feminismo nos Quadrinhos dos anos de 1980. In: IdeAs –  Idées d’Amériques [En ligne], número 19, 2022. Disponível em : http://journals.openedition.org/ideas/12389.

LIMA, Savio Queiroz. Mulher-Hulk – De Selvagem a Sensacional: As Transformações do Feminismo nos anos de 1980 e a Representação de uma Nova Mulher nos Quadrinhos. Encontro Redor – UFBA, 4 a 7 de dezembro de 2018. Disponível em: Anais do XX Encontro Internacional da Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre Mulher e Relações de Gênero (REDOR).

LIMA, Savio Queiroz. Mulher Maravilha e Segunda Onda do Feminismo: Transições da Personagem de Quadrinhos Durante a Reforma Feminista Durante as Décadas de 60 e 70. In: Revista de Trabalhos Acadêmicos – Pesquisas Desenvolvidas nos Programas de Pós-graduação Stricto Sensu, Volume 2, número 13. Niterói, 2016. Disponível em: Revista Universo – Mulher Maravilha e Segunda Onda do feminismo.

PERROT, Michelle. As Mulheres ou Os Silêncios da História. Editora Edusc, Bauru, 2005.

WOLF, Naomi. O Mito da Beleza – Como as Imagens de Beleza são Usadas contra as Mulheres. 18a edição. Editora Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro, 2022.

3 comentários

  1. Boa reflexão sobre as questões feministas. O autor faz críticas sobre os padrões de beleza e a mercantilização dos mesmos, ao mesmo tempo traz discussões sobre pos-feminismo; ideológica de gênero e movimentos feminismo . Recomendo a leitura.

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